Deu hoje na Folha de S. Paulo. Interessante. Vale conferir. Vou encomendar.
Os inimigos de Hitler
Livro conta pela primeira vez história do jornal
'Münchener Post', maior oponente do nazista na imprensa alemã
CASSIANO ELEK MACHADODE SÃO PAULO
De todos os bilhões de folhas de papel jornal
gastas ao longo da história para tratar de Adolf Hitler, as primeiríssimas
saíram da gráfica de um jornalzinho chamado "Münchener Post".
Numa sexta-feira de maio de 1920, uma nota da seção
"Assuntos de Munique" registrava: "Uma espécie de partido, que
ainda anda de fraldas e aparenta ter saúde bem fraca, vem aparecendo às vezes
em público, sob o nome de Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores
Alemães'. Na terça-feira à noite, um senhor chamado Hitler falou sobre o
programa desse partido'".
A reportagem informava que o tal senhor
"pregou o antissemitismo nos moldes nacionalistas".
Mais do que pioneiro em farejar que era preciso
ficar de olho no rapaz de bigode curto e fala inflamada, o "Post"
converteu-se logo em seu mais encarniçado inimigo na imprensa alemã.
Num livro importante sobre o fenômeno nazista,
"Para Entender Hitler" (Record, 2002), o jornalista norte-americano
Ron Rosenbaum opina: "A batalha travada entre Hitler e os corajosos
repórteres do Post' é um dos grandes dramas nunca relatados da história do
jornalismo".
Uma jornalista brasileira radicada na Alemanha
desde 1991 resolveu a questão. Em "A Cozinha Venenosa - Um Jornal Contra
Hitler", livro que acaba de ser lançado aqui, Silvia Bittencourt, 49,
conta pela primeira vez a história.
Fruto de três anos de trabalho, o volume, lançado
pela editora Três Estrelas (do Grupo Folha), conta em minúcias as batalhas, que
transcenderam as palavras, entre o diário e os nazistas.
Segundo Bittencourt, e a julgar pelo que relata
Rosenbaum, não há nem na Alemanha livros sobre o "Post".
"Aqui ninguém conhece o Münchener Post', nem
mesmo os políticos sociais-democratas atuais", diz a autora, em referência
ao partido político alemão que criou o jornal, no final dos anos 1880.
ASCENSÃO
A pesquisa de Bittencourt se desenvolveu em
especial em arquivos e bibliotecas de Munique, cidade na qual o austríaco Adolf
(1889-1945) se estabeleceu em 1913.
Depois de ter lutado na Primeira Guerra Mundial,
entre 1914 e 1918, o até então artista frustrado encontra nos fundos de uma
cervejaria no centro da cidade, em 1919, uma reunião de um pequeno partido
trabalhador, onde começaria sua trajetória.
"De um desocupado, sem formação ou profissão
alguma, Hitler se tornou, em poucos meses, uma estrela em Munique", diz
Bittencourt.
Ao contar a trajetória do "Münchener
Post", ela narra em detalhes a ascensão de Hitler e do partido, que saltou
dos 200 filiados do final de 1919 aos 4 milhões de membros em 30 de janeiro de
1933, quando Hitler foi nomeado chanceler alemão.
O "Post" não duraria então mais do que 40
dias. Embora já tivesse sobrevivido a incontáveis atentados nazistas, o de 9 de
março foi o final.
"Destroçaram os equipamentos de produção do
jornal, como os linotipos. Colocaram barras de ferro nas engrenagens das
prensas rotativas, a fim de impedir que elas voltassem a ser usadas, e lançaram
os grandes barris de tinta de impressão sobre as calçadas", relata a
autora.
O pequeno grupo de jornalistas que produzia o
diário, que à época tinha dez páginas diárias e modestos 15 mil exemplares, não
estava na Redação. Quase todos escaparam, um deles cruzando os Alpes a pé.
Outros não tiveram a mesma sorte.
O editor de cultura, Julius Zerfass, foi um dos
primeiros encarcerados no campo de concentração de Dachau, do qual seria solto
no fim do ano.
"A Cozinha Venenosa", título do livro,
era a maneira pela qual Hitler se referia ao jornal. No glossário do ditador,
"veneno" era um termo usado para o mais abominável.
O jornal retribuía chamando o nazista de
"arremessador piolhento de lama" ou classificando seu partido, já em
1923, como "o bacilo venenoso mais perigoso que o corpo do povo vem
carregando consigo". Como diz Rosenbaum, se houve alguém na história que
pode dizer "eu avisei" foram os repórteres do "Post",
primeiros "a tentar alertar o mundo para a natureza da besta feroz que
rastejava em direção a Berlim".
CRÍTICA - HISTÓRIA
Obra é biografia de um 'Post' suicida
e visionário
Em 'A Cozinha Venenosa', Silvia Bittencourt revela
a trajetória heroica do jornal alemão que tentou destruir Hitler
LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHODA
EQUIPE DE ARTICULISTAS
O "Münchener Post" descobriu em 1920
"um senhor chamado Hitler". Desde então, até desaparecer, cinco meses
depois da ascensão do Führer, em 1933, o jornal participaria de um
enfrentamento suicida e visionário.
O livro de Silvia Bittencourt é o primeiro a contar
uma história heroica e surpreendente. Tem como cenário a deterioração
econômica, partidos de direita e esquerda organizando milícias, o poder público
debilitado, a escalada da violência.
Por que o "Münchener Post" ficou tanto
tempo esquecido? Ron Rosenbaum, ao registrar em 1998 esta lacuna na história do
jornalismo, lembra ser mais reconfortante para a autoestima alemã acreditar que
ninguém realmente sabia quem era Hitler até ele assumir o poder.
O "Post" sabia. Criado pela
social-democracia alemã, com mais de meio século de militância, o jornal tentou
abater Hitler no nascedouro.
É uma coleção dramática de episódios até a
destruição total das suas instalações: confrontos verbais, agressões físicas,
ameaças, pequenos atentados, censura, interdições, processos, invasões,
empastelamentos.
A partir da aparição nas cervejarias de Munique, o
jornal atacou Hitler por todos os lados. Ridicularizou seu estilo. Investigou
seu jeito de viver. Cuidou do seu guarda-costas, das suas roupas. Denunciou
crimes e a matança de adversários.
No apêndice do livro, onde estão traduzidos seis
artigos originais do jornal, é possível ler, por exemplo, o texto no qual o
"Post" antecipou a "solução final da questão judaica", em
1931.
O título, "A Cozinha Venenosa", é uma das
maledicências de Hitler dirigidas ao jornal, "judeu e marxista".
"Münchener Pest", esbravejavam os
nazistas, tratados como criminosos,e não agentes políticos, por jornalistas
destemidos como Martin Gruber e Edmund Goldschagg.
Se a tiragem do jornal era modesta (15 mil
exemplares em 1932), seu engajamento partidário (alguns de seus colaboradores
seriam personagens importantes do jogo político: Kurt Eisner, após proclamar a
República da Baviera e ser seu chanceler, foi assassinado em 1919, horas antes
de o futuro editor Erhard Auer sofrer um atentado) tornaria o conflito mais
intenso.
Silvia Bittencourt vasculhou arquivos alemães e
mostra a desenvoltura de Hitler em busca do poder, usufruindo da desintegração
institucional do país, da inanição da polícia e dos tribunais.
Soaria estranha hoje a exploração sensacionalista
do suicídio da sobrinha de Hitler pelo jornal.
Contra um princípio programático do próprio
partido, pela descriminalização da homossexualidade, o "Post"
divulgaria intrigas e chantagens em torno do comportamento de Ernst Röhm,
comandante do exército privado de Hitler: o nacional-socialismo era "um
depósito de doentes e homossexuais" prestes a vencer.
Hitler era tangível e vulnerável, acreditava o
"Münchener Post". Para destruí-lo, valia tudo.
A COZINHA VENENOSA - UM JORNAL CONTRA HITLER
AUTORA Silvia Bittencourt
EDITORA Três Estrelas
QUANTO R$ 49,90 (374 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo